domingo, 21 de dezembro de 2008

Fim de Semana entre parênteses

-Invasão! Vim passar o fim-de-semana com você!

Pego de surpresa com a informação intimativa, Vinícius se manteve perplexo à porta por algum tempo. Sem reação, olhava para Mariana. Tentava realizar o que aquela surpresa significava. E realizou: significava um Siroco no seu fim-de-semana, geralmente previsível.


-Oi ! Mas... assim de repente? Sem planos? Podia ter telefonado.



-Claro! Com planejamento não tem graça. Achei que precisava de mim. Vai me deixar aqui na porta, é?


-Ah... desculpe, Mariana. Entra aí.Não repara a bagunça.


Mariana foi entrando, muito à vontade, sala e vida dele adentro. Ia largando a bagagem pelo chão.


-Mas isso tudo para um fim-de-semana? O que tem nessas sacolas? Roupas? Mantimentos? Um arsenal de guerra?


-Ah! Un petit bagage!


Mariana tirava os objetos das sacolas, um a um, explicando-os de modo didático:





-Trouxe só o fundamental, veja:



o Três kits de bolhas de sabão, para enfeitar o ar, melar a casa e evocar a leveza!

o Dois dos nossos ídolos - Pinky e o Cérebro -, pois vamos dominar o mundo neste

fim-de-semana!

o Isto, como você pode ver, é um carro conversível vermelho. Porsche, viu?! A réplica é perfeita. Lembro de você ter falado, em sua última crise, que só passaria a respeitar as mulheres que tivessem um carro conversível vermelho. Como não especificou o tipo de carro, então a miniatura está valendo. Logo, me respeite!

o Chocolates! Chocolates! Chocolates e mais chocolates!

o Ah! Isto é bom! CD do Lulu Santos! Aqui tem as melhores dele. Mas se espalhar por aí que eu ouço Lulu, corto relações! Todo mundo tem uma fraqueza musical, e esta é a minha. Coloca aí pra gente ouvir! No modo aleatório, por favor! Gosto sempre do imprevisível !


Ela me encontrou, eu estava por aí, num estado emocional tão ruuuuuuuim, me sentindo muito só!...” – faixa 05


Notando uma sacola menorzinha intacta, Vinícius observou:

- Tem mais aquela ali, a menor.

- Ah, essa é a menos importante. Algumas roupinhas básicas e uma sandália de salto bem alto, para te ajudar a lavar louça, se for o caso. Só lavo louça de salto alto. E não me perguntepor quê.

- Algum livro?

- Não achei nas livrarias nenhum Manual de Sobrevivência para Fins-de-Semana com Depressivos. Então trouxe As Mil e Uma Noites mesmo, versão do Cony, que não vou ler, mas deve servir. Sempre se leva um livro na bagagem, né? De preferência com títulos sugestivos. Lê-lo é o de menos.

- Se você quiser uma literatura de peso, posso lhe mostrar o diário que fazia aos 18 anos, quando eu achava que ia dominar o mundo. Mal tinha barba. Por falar nisto, acha que devo fazer a barba?

- Não. Gosto dela assim por fazer. Um jeito meio bicho de ser. É sexy. Acho que vou gostar de ver seu diário imberbe. Aumenta o Lulu Santos aí, vai !

“E não tem vacilo nem enganooooo que estrague nosso planoooooo... “ – faixa 03

Estavam sentados no chão. Ela já se sentia em casa. Ele ainda não, ainda que a casa fosse dele.

- Tenho uma mini-cama elástica. Veja!

- Pra que serve?

-Pra pular, ora ! Assim, ó ! – Vínicius deu uns saltinhos demonstrativos. Ela adorou aquela parafernália. Divertiam-se com pouco.

“ Faltava abandonar a velha escoooooola, tomar o mundo feito Coca-colaaaaaaa..” – faixa 10


Mariana suspirou e fitou Vinícius com alguma extemporânea seriedade. Dessas seriedades que sempre se metem a tirar súbitas e inúteis conclusões:

- Desculpe-me por invadir a sua vida assim, sem pedir licença, perturbando seu tédio e entrando em seu planeta com música, brinquedos e dança. Já sei, já sei, não tinha esse direito. Mas agora estou aqui, você vai ter que me engolir! E sem precisar comer! – sorriu, tentando manter o humor.

- Quisera que todos os invasores do meu planeta fossem um ET assim... – o tom de Vinícius era melancólico, tom de quem nada espera, tom de desencanto, de quem calou a capacidade de se surpreender.


Tudo o que se vê não é igual ao que a gente viu há um segundo, tudo muda o tempo todo no muuuuuuuuuuundo. Não adianta fugir nem mentir pra si mesmo, agora, há tanta vida lá fora, aqui dentro, sempreeeeeeeee, como uma onda no mar... “ -faixa 12


As horas passavam. Distraídos, não percebiam as mãos implacáveis do tempo. Só a distração permite tal façanha. Já era a terceira vez que o CD reiniciava.

-O que vamos fazer agora? Alguma idéia?

-Vamos ao supermercado?

-Vamos ! Está precisando reabastecer a despensa?

-Não! Mas vamos ao supermercado assim mesmo.

Fizeram a festa no supermercado. Obviamente, não era o lugar mais apropriado para se fazer uma festa, por isso mesmo a festa foi boa. Tinham essa afinidade, de não atribuir uma relação necessária de causa e efeito aos produtos bem (mal) acabados da civilização.

Na cozinha:

- Você precisa comer alguma coisa, Mariana - ele tinha esse ar fomentador, parecia do signo de Câncer.

- Não, acho que não preciso. Nunca sinto fome.

- Ótimo! Então vamos fazer bolinhos de chuva! Não precisamos da fome.

- Eu adoro! Você sabe fazer mesmo? Sempre desconfio de homens na cozinha.

- Você vai ver. Enquanto isso, coloca de novo o Lulu. Já virou trilha incidental.

“Eu não pedi pra nascer, eu não nasci pra perdeeeeer, nem vou sobrar de vítima das circunstâncias. Eu to plugado na vida, eu to curando a ferida, às vezes eu me sinto uma mola encolhiiiiiiiiiiiida... / E a gente vive juntoooo e a gente se dá beeeeem, não desejamos mal a quase ninguéeeeeem/ E gente vai à lutaaaaa e conhece a dor, consideramos justa toda forma de amooooor... Hey!” – faixa 01

- Estão ficando lindos! Depois lavo a louça, então! -colocou o salto alto para a nobre tarefa.

- Prova só!

Mariana saboreava os bolinhos de chuva, deliciada. Tinha todos os sentidos aguçados. Quase sentia fome.

- Hmmmmm... Foram os melhores que eu já comi! Nem a Nazaré fazia melhor. Nunca mais vou esquecer desses bolinhos de chuva ao pôr-do-sol.

- Quem é Nazaré?

- Nazaré é... deixa pra lá! Sinto uma imensa preguiça descritiva agora para explicar quem é Nazaré.

- Podemos sair pra dançar, vamos?

- Mas você não quer ficar em depressão? Eu não me importo, quero que fique à vontade. Sinta-se em casa. Não me trate como visita, sou invasora!

- Quero dançar!

- Tá bem! Então vamos! Saímos depois das onze então, né?

Vamos dançar, luzir a madrugadaaaaaaa, inspiração pra tudo o que eu viveeeeer...” – faixa 13

Danceteria lotada. Sentar, nem pensar. A banda que se apresentava tocava um repertório diversificado, que ia do rock à MPB. A princípio, dançavam timidamente, cada um pro seu lado. Dançavam. Dançavam. Dançavam conforme o ritmo e fora dele também. Não se importavam com nada, nem com dores, nem com glórias. Dançavam tão somente. E a banda tocou Lulu - até a banda tocou Lulu: “Um Certo Alguém”. Entreolharam-se. Continuaram dançando, agora de mãos dadas. Uma espécie de rito tácito de cumplicidade, coreografia de almas que bailam vaporosas no ar. Uma dança tribal, daquelas de trazer sol ou chuva.

“Quando um certo alguéeeeeeeem cruzou o seu caminho e mudou a direção, ôooo ôoooo ôooooo... Me dê a mão, vem ser a minha estrelaaaaa, complicação tão fácil de entender, vamos dançar luzir a madrugadaaaaaaaa .“

A música acabou, e com ela o ritual. Voltaram para casa. O asfalto das ruas era cheio de asfalto. E assim, já se tinha ido metade de um fim-de-semana, totalmente fora do roteiro. Dormiram. Não, não dormiram juntos. Não é assim essa história. Eram amigos. Amigos, cuja ligação não necessitava de definições ou de aproveitar momentos oportunos para dar vazão à libido.

“Não leve o personagem pra cama, pode acabar sendo fatal...” – faixa interna

Vinham de planetas diferentes. Diferentes e especiais. Eram Mariana e Vinícius, e não Mariana com Vinicius (ou vice-versa).Não nomeavam sentimentos nem sensações. Dois sensíveis marginais, meio puros, meio sujos. Dois perdidos num fim-de-semana limpo. Cada um com suas histórias, buracos, diferenças e indiferenças.

E ela me faz tão bem, ela me faz tão bem, que eu também quero fazer isso por eeeeeela...” – faixa 05

-Não se esqueça de desligar o som!

-Pode deixar!

“A vida é mesmo assim, dia e noite, não e sim... “ – faixa 08

O dia seguinte foi estranho. Um anacrônico calor de 40 graus e eles sequer percebiam. E desta vez não era porque estavam distraídos. Não percebiam porque estavam alheios; e estar alheio não é estar distraído. Esqueceram-se um pouco das brincadeiras, do Pinky e o Cérebro, da cama de pular, dos chocolates. Mariana nem usou as bolhas de sabão, rotineiras companheiras.

-Daqui a pouco vou embora. Acho que já abusei do direito de invadir, não quero colonizar.

"Prá você veeeeeeeeeeer, eu to voltando pra casa... Pode ser que o barco vire, também pode ser que não" - faixa 14

Ele falava pouco. Dizia muito. Mariana continuou, triste, como são os finais de festa:

-Vou deixar você aí com suas idéias fixas e voltar para as minhas. Este fim-de-semana foi só um intervalo, um parêntesis, umas férias para os dramas. Foi legal. Valeu! Desfixamos as idéias em uma minúscula partícula do tempo, e foi só isso. Não faltará Super Bonder para fixá-las novamente. Você tem urgência de voltar a sofrer, de afundar-se nos pântanos. E eu não tenho o direito de tentar lhe salvar de si mesmo. Melhor lhe salvar de mim. Acabou o parêntesis, e não haverá ninguém pra nos dizer: bem-vindos ao circo real!

Aqui sou eu sozinho, do outro lado não sei, não sei. SOS Solidãooooooo...” – faixa 02

Abraçaram-se, assim como se quisessem ficar presos ali, na ilusão de que a vida podia ser uma sensação de simples azul. Como se a escala de cinzas não os esperasse do outro lado da linha. Era um abraço aconchegante, de coração com coração, cuja força trazia junto uma indesejável certeza. A certeza de que a cena não se repetiria. Abraços falam, exclamam, riem e choram melhor do que qualquer manifestação sonora. Vinicius perguntou, já sabendo a resposta:

- Será que você volta para outro fim-de-semana?

- Acho que não. Vou precisar lhe detestar depois.

- Entendo. Talvez eu também precise.

Ele sempre entendia. Tinham a vantagem de não precisarem se explicar demais.

- Fique bem! Ou melhor, fique do jeito que quiser! Só não maltrate meus brinquedos. Se um dia nos tornarmos inimigos íntimos, eles vão servir para suavizar nossa fotografia existencial.

"Ainda leva uma cara pra gente poder dar risada, assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade" - faixa 11

- Não vai levar de volta o CD do Lulu?

- Não. Este é seu. Tenho um igual em casa. Pode me chamar um táxi?

Vinicius chamou o táxi por telefone. Levou-a até o carro. Não se olhavam muito. Despedidas davam vontade de chorar e não foram previstas cenas com lágrimas.

- Tchau então!

- Tchau! Obrigada e desculpa! - agradecer e se desculpar era contra a sua religião. Ela dizia isso para zombar de si mesma!

Da janela do táxi gritou:

- Não se esqueça de ouvir Lulu de vez em quando! Mesmo que seja pra se torturar!

Mariana chegou em casa perturbada. Indiferente aos pensamentos confusos, não procurou porquês. É sábio não vasculhar os porquês de situações perdidas. Uma hora depois, tomada de súbita inquietação, pegou o telefone. Não sabia bem o que ia dizer, mas sabia que era fundamental o que iria dizer. Oito chamadas, ninguém atendeu. Vinícius devia estar chorando em algum canto - era emotivo, de choro fácil -, ou então dormindo. Esta cena foi cortada do script. Mariana colocou o telefone no gancho e suspirou melancólica: - Melhor assim!...

“...nós somos medo e desejo, somos feitos de silêncio e sons, tem certas coisas que eu não sei dizer...” - faixa imaginária

Não mais se encontraram. Pior. Arrumaram uma fórmula infálivel de destruir toda e qualquer possibilidade de reencontro. A doce e profunda ligação interplanetária acabava ali.

“...Deixo assim ficar subentendido, como uma idéia que existe na cabeça e não tem a menor obrigação de acontecer... O que eu ganho, o que eu perco ninguém precisa saber...” - faixa imaginária

No futuro, já estranhos, distantes e pouco admiráveis aos olhos um do outro, ela diria, como quem lança ao ar uma profecia fatal, da qual também seria vítima:

-E quando ouvir Lulu Santos, vai lembrar de mim...