segunda-feira, 26 de março de 2012

Memória Cruel

Os dias transformaram-se em semanas e o calor arrasador do verão foi se transformando em pancadas de chuva e desastre que vieram com o inverno. Aos poucos a vida sem a minha amiga se tornou mais tranquila. Havia dias que se passavam que eu nem me lembrava dela, mas então um detalhe - aquela foto no espelho do meu quarto, a flor que ela me deu, o simples tom laranja, a escaleta - subitamente trazia-a de volta. Momentos que eu esquecera fazia muito tempo, de repente, surgiam em minha mente com clareza cristalina, como se fossem clipes de velos vídeos caseiros: o modo como ela brigou comigo naquele carnaval porque dormi enquanto conversávamos no escuro da madrugada; como ela gritava "Tcheptche" ao me ver, não importava o local; como ela atendia o telefone: "fala gostosa!".
Pequenos momentos que provavelmente nem valeriam a pena serem lembrados, mas estavam eles, surgindo aleatoriamente em minha tela de cinema mental nas horas e nos lugares mais improváveis. A maior parte deles me fazia sorrir, alguns deles me faziam morder os lábios e pensar, outros me faziam querer chorar desesperadamente por não tê-la mais aqui.
Ela foi a personagem central de alguns dos capítulos mais felizes da minha vida. Capítulos de bandas, saídas, festas com nosso grupo de amigos. De estrondosos sucessos e frustrações arrasadoras; de descobertas, liberdade e auto-realização. Ela entrou em minha vida quando menos esperava. Apesar de tudo, de todas as frustrações e expectativas não realizadas, ela me deu um presente gratuito, porém de valor inestimável. Ela me ensinou a arte da amizade. Como oferecê-la e como aceitá-la. Quando isso existe, a maior parte das outras peças acaba por se encaixar.


(Escrito em Março de 2010)